quarta-feira, 14 de maio de 2014

CONSELHEIRO DAS ÁGUAS




CONSELHEIRO DAS ÁGUAS



A noite estava linda, a lua cheia e estrelas povoavam o céu, o barulho de cavalos e carroças que a cada vez aumentava mais ia me inquietando.
Havia um boato que os portugueses procuravam negros para serem levados ao Brasil; a dificuldade de arrumar negros escravos  a cada dia ficava mais difícil.
Em Angola negro que tinha profissão não era levado, mas naquela noite ninguém teve perdão, homens, mulheres e mesmo crianças, todos foram levados, só ficaram alguns que devido a idade não suportariam a viagem.
Permanecemos três dias trancados no porão do navio, esperando completarem a lotação. O cheiro de suor e o fedor de fezes e urina estava insuportável, mas a dor e as lágrimas eram piores.
Durante o percurso negros eram usados na limpeza e nos remos até a exaustão; vi mãe com criança no colo se jogando em alto mar, para colocar fim em sua agonia.
Muitos perderam a vida e foram jogados ao mar.
Chegamos ao Brasil por volta de 1820 na região onde hoje é Prado - Bahia, fomos lavados e colocados em uma praça pública como mercadoria; em nosso redor senhores e senhoras bem vestidos nos olhavam de cima a baixo e cada um apontava aqueles que lhe interessavam, até que chegou minha vez. Fomos em seis comprados pelo senhor Antonio dono da Fazenda São Francisco, e conhecemos quem seria nosso proprietário daquele dia em diante.
Na fazenda fomos batizados num rio que cortava as terras do meu senhor, como era feito naquela época o batismo católico, eu que chamava Kapiñgala (pois era filho único)  e o significado do meu nome é Herdeiro, passei a me chamar Joaquim.
Para nós Angolanos não houve dificuldade com a língua porque convivíamos com os portugueses já algum tempo, mas como havia outros negros de outras regiões demoramos um pouco até compreender a todos.
A fazenda estava mudando seu plantio de café para algodão; trabalhei ali muitos anos. Me apaixonei por Quitéria e tivemos seis filhos sendo cinco homens e uma mulher, apenas dois vi crescer, os demais foram vendidos ainda muito pequenos, apenas Malaquias e Damião ficaram na fazenda.
Já velho e com o boato do fim da escravidão perdi minha companheira para uma febre que mesmo com todas as minhas ervas não consegui vencer. 
Algum tempo depois houve uma fuga em massa comandada por Zeferina uma negra que brigava feito homem, muitos negros fugiram para o quilombo do Urubu; diziam que o local era bonito e tinha até lagoa, eu e o velho Guiné não conseguimos acompanhar os mais novos. Malaquias quis ficar para nos ajudar, mas eu e Guiné não deixamos e falamos para ele que se salvasse, pois era  novo,  nós que já eramos velhos, nos escondemos numa cachoeira do rio Caí. Lá fiquei até meu desencarne. Vivemos ali muitos anos, não sabíamos o caminho correto do quilombo e o medo de ser achado pelos cachorros e pelos capitães do mato impedia que os dois velhos se arriscassem, porém nas grutas da cachoeira os cães perdiam o faro e estávamos protegidos.
Chegamos até a fazer amizades com quem ali vinha se banhar, até branco vinha conosco se aconselhar, ou procurar remédio para suas doenças com as ervas que conhecíamos ou mesmo para  uma boa conversa.
Eu tinha um caroço no pescoço que a cada dia crescia mais, mal eu conseguia comer e aos poucos fui ficando fraco até que não mais levantei das folhas que me serviam de cama, lembro que falei para meu amigo Guiné, "vai meu velho você não tem mais nada a perder, procure nosso povo e viva com eles até nos encontrarmos novamente".
E numa noite fria, vi do alto meu corpo deitado nas folhas e uma luz muito forte pôs fim as minhas dores. 
Hoje sob a Cachoeira de minha mãe Oxum ainda dou os meus conselhos e minhas mirongas, usando como instrumento meu filho......

SALVE MINHA MÃE OXUM...
SALVE MEU PAI OXALÁ....
SALVE AS ALMAS.....

Orlando Garcia (Sacerdote da Tenda de Umbanda Pai Cipriano das Almas)